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GRACIAS, ABUELITAS

Eu venho de uma linhagem de mulheres fortes.

Minha mãe entrou na faculdade de engenharia elétrica na Escola Politécnica há 54 anos, ela e mais duas mulheres em uma sala de mais de cinquenta homens. Matou um leão por dia para criar duas filhas, manter um casamento por mais de 30 anos e ser uma profissional de sucesso. Nem sempre tinha tempo para brincar comigo no final do dia, mas fez parte da equipe que criou o “patinho feio”- o primeiro computador doméstico do país. Ainda assim, ouviu de um alto executivo da IBM, quando a empresa chegava ao Brasil, que era a candidata perfeita para o cargo mas que não seria contratada por ser mulher. Depois de um divórcio doloroso, se reergueu de uma depressão para continuar cuidando da casa sem nunca depender do dinheiro de pensão para sustentar a família.

Maria Alice, minha mãe, nasceu do ventre de uma mulher que sobreviveu ao inferno. Minha avó veio da Lituânia para o Brasil quando tinha 17 anos. Chegou por aqui fugindo da primeira grande guerra, em companhia de meu bisavô que, após instalá-la, voltou para o Leste Europeu para buscar o restante da família. Morreu na viagem. O Brasil fechou as fronteiras para fugitivos de guerra e minha avó nunca mais viu a mãe e nenhum dos sete irmãos. Não falava português e nunca tinha visto um negro na vida. Custou a aprender o idioma e a se acostumar com o calor. Quando eu era pequena, ela me contava sobre as brincadeiras de sua infância no verão, quando os morangos brotavam por debaixo da neve.

Depois de sua morte eu ficaria sabendo da história de quando o exército inimigo invadiu a escola na qual ela estudava; os professores esconderam os alunos atrás das árvores da floresta que cercava a pequena construção, orientando-os a voltarem para a escola apenas quando um deles avisasse que estava seguro. As crianças aguardaram por horas, mas nenhum professor voltou – foram todos fuzilados. Minha avó tomou a frente e liderou a pequena trupe de 14 pessoas, pois sabia o caminho de volta para o vilarejo, 5 km distante de escola. Quando as crianças chegaram, a cidade inteira caiu no choro – sabendo do que havia acontecido na pequena escola, as famílias acreditavam que as crianças haviam sido levadas pelos soldados inimigos, e mal puderam acreditar que havia sido Vera, uma pequena menina de sete anos de idade, que havia conduzido-as de volta para casa. Vera – este era o nome de minha avó.

Esta força e coragem está presente no meu DNA. É a minha ancestralidade. E, talvez por isso, eu nunca tenha conseguido me conformar em dar menos do que o meu máximo em tudo o que fiz. Pode parecer engraçado, mas eu nunca enxerguei com os devidos olhos o ato de coragem que eu tive quando, aos trinta e poucos anos de idade, simplesmente resolvi me mudar de mala e cuia para a China. Quando as pessoas arregalavam os olhos e diziam o inevitável “Uau! China?!”, eu não entendia. Na minha visão da coisa, eu havia feito não tinha sido nada demais. Assim como ter conseguido ter um parto normal em uma sociedade cesarista que me dizia que meu filho de quase 4 quilos “me restaria por dentro” não foi nada demais.

A verdade é que esta força, que tantas vezes me impulsionou a fazer coisas incríveis, muitas vezes também me violentou. Eu enxergo esta energia como uma potencialidade, que tanto pode ser canalizada para construir como para destruir – e este fogo que arde dentro de mim e que sempre me sussurra ao ouvido que não existe nada que eu seja incapaz de fazer muitas vezes já me queimou. Eu me fiz de forte em situações diante das quais minha alma tremia, eu não pedi ajuda em momento de extrema vulnerabilidade e coloquei mais pessoas debaixo de minhas asas do que eu poderia proteger.

Eu venho de uma linhagem de sobreviventes, e sobreviventes sobrevivem – mas nem sempre vivem.

Minha avó nunca deixou de ser a órfã amargurada – foi assim que ela criou seus filhos. Uma sobrevivente órfã que estava preocupada demais em cuidar de sua própria criança ferida para perceber as necessidades da pequena filha, que vivia rodeando sua saia. E para piorar, apenas 6 meses depois de eu ter nascido, se tornou a viúva amargurada. A viuvez arrancou a alegria de sua vida e mais de uma vez a vi chorando enquanto segurava um porta-retratos antigo onde ela e meu avô posavam de mãos dadas.

Minha mãe, filha desta mulher, nunca aprendeu a demonstrar afeto. A verdade é que ela não deve ter tido muitos exemplos de afetividade nos quais se basear para construir uma maternagem muito diferente do que a que recebeu. Eu não entendia porque ela trabalhava tanto, não entendia que estar sempre ocupada era a sua própria batalha pela sobrevivência em um cenário profissional dominado por homens, abusos e preconceito.

Tudo aquilo que a gente não olha cresce nas sombras – e eu própria assumi o papel de “órfã” sobrevivente a guiar pessoas pela escuridão das matas escuras em uma jornada de volta para casa, sempre ocupada demais trabalhando e tendo a necessidade inconsciente de precisar provar o meu valor todos os dias, o tempo todo. Eu me tornei uma soldada de guerra, sempre com o abdome contraído esperando uma porrada do mundo, e precisava ser forte e sobrevivente como elas para estar pronta e lidar com os desafios que certamente viriam. E, na ausência de uma grande tragédia, fui criando as minhas próprias.

Mas a Existência sempre traz aquilo que precisamos viver.

Há alguns dias participei da experiência xamânica da Sauna Sagrada, o Temazcal, e como em um passe de mágica todas as associações vieram à tona. Minha intenção na Sauna era a de me reconectar com o meu feminino e, de repente, entre uma “puerta” e outra, comecei a me sentir profundamente incomodada com o fato de estar usando o sutiã do biquini. Eu estava me sentindo apertada, abafada, aquele sutiã me incomodava e eu sentia falta de ar. Eu sabia que outras mulheres dentro da sauna estavam usando apenas a calcinha do biquini, sabia que os homens que participavam da sauna eram todos guardiões do sagrado masculino ou parceiros amorosos das mulheres presentes e sabia, mais do que qualquer outra coisa, que estávamos no mais profundo breu – eu não conseguia enxergar um palmo diante do nariz a não ser quando a “puerta” se abria para que novas “abuelitas calientes” entrassem em nosso espaço sagrado, mas estava absolutamente congelada dentro do desconforto. Eu não podia me libertar. Eu precisava ficar presa, amarrada, apertada, eu não podia ser livre como aquelas outras mulheres.

O “meu” feminino era tudo, menos livre. Eu não podia deixar que meus seios, a maior representação do feminino nutridor, estivessem soltos e livres. O “meu feminino”, o feminino das mulheres que vieram antes de mim, nunca foi livre e nutridor. Esteve sempre debaixo de uma armadura, pronto para a batalha, protegido.

Tudo, menos livre e vulnerável.

E quando eu me dei conta disso, tirei o meu sutiã. E continuei sem ele no banho à luz da lua cheia, que se seguiu ao Temazcal. Eu e as outras mulheres, com os seios livres, conversando livremente com homens de espíritos livres, preparados para lidar com a nossa liberdade e encarar nossos corpos como algo que vai além de um objeto sexual excitante.

Livre e vulnerável.

Eu honro meu DNA, minhas ancestralidade e todas as mulheres que vieram antes de mim – agradeço por cada luta travada pela sobrevivência, por cada superação depois de uma queda, por cada limpar de sangue, suor e lágrimas destas fortalezas que permitiram que eu estivesse aqui hoje. Mas não preciso travar mais suas batalhas. Se por um lado o feminino que chegou até mim foi carregado de abandonos e de esforço para ser igual aos homens, o feminino que eu quero deixar na história do mundo daqui em diante é o de reencontro da própria força que, muitas vezes, se esconde na liberdade e na vulnerabilidade.

A fragilidade pode matar em tempos de guerra, mas eu não estou em guerra. E não vou descansar enquanto não desvendar cada pequeno não que eu venho dizendo a mim mesma.

Gracias, abuelitas.
Ačiū, močiutė.
Gratidão, mãe.

Que venham as próximas.

Sobre

É psicóloga e uma das maiores vozes brasileiras do autoconhecimento e da liberdade emocional na internet. Desde 2012, impacta diariamente a vida de mais de 400 mil pessoas através de seus canais nas redes sociais e de seus 3 livros publicados. Flavia está na lista das 14 YouTubers brasileiras para conhecer e acompanhar, segundo o jornal O Estado de São Paulo, e seu primeiro livro, Sua Melhor Versão – Desperte para uma nova Consciência, foi best-seller no Brasil, estando nas principais listas de títulos mais vendidos. Com mais de 8000 alunas, conduz pessoas a se conhecerem e se reconectarem com quem realmente são para construir uma vida mais leve nos relacionamentos consigo mesmas e com os outros.