Nós desafiamos a vida o tempo todo.
Sempre que vamos dormir e dizemos “boa noite” para alguém que amamos, estamos desafiando a morte e bradando, em alto e bom som: “eu vou sobreviver à madrugada escura”. Todas as vezes em que compramos passagens aéreas com dois ou três meses de antecedência para as tão sonhadas férias, estamos desafiando a ausência de controle e gritando, na cara da incerteza, que “eu sou dono da minha vida e determino o que vai acontecer”. Mesmo que não estejamos conscientes disso. Mesmo que estas coisas sejam as últimas nas quais estejamos pensando quando tomamos essas atitudes.
Nós estamos desafiando a vida o tempo todo, e as promessas são a forma mais corajosa de fazer isso.
Há alguns meses, minhas duas cachorras vieram morar com a gente. Hannah, uma rottweiller, e Maya, uma border collie, vieram da praia, onde eu morava até sete anos atrás. E passado o entusiasmo inicial, em que as levávamos para passear de duas a três vezes por dia, são raras as ocasiões em que nos animamos a pegar a coleira para sair com elas.
Uma série de motivos justificam este processo (que vão de filho pequeno à minha lombalgia, que sempre ataca quando levo Maya para passear porque ela puxa muito ao ponto de me machucar), mas o fato é que eu me sinto péssima com isso. Péssima. Especialmente por Maya, uma border collie ligada no 330 que late muito, e que seria bem mais calma (e feliz) se gastasse um pouco de sua energia. Mas o fato é que, quando vejo, o dia passou e eu não consegui.
E, a cada noite, quando desço as escadas para dar comida para elas, impreterivelmente me surpreendo fazendo carinho em suas orelhas, me desculpando por não termos passeado mais uma vez, e prometendo que no dia seguinte vai ser diferente. Nos últimos tempos chego a sentir raiva de mim mesma, porque ao mesmo tempo em que sei que muito provavelmente não vou conseguir cumprir minha promessa, continuo prometendo.
E, então, está chegando o final do ano e a gente começa a fazer planos pro ano que vem. Começamos a prometer coisas – mesmo que não percebamos que estamos prometendo. Temos essa coisa, de achar que alguma coisa vai ser diferente apenas pelo fato da folhinha estar virando, mas o fato é que pensar em um ano inteirinho pela frente nos faz acreditar que, por algum motivo, seremos capazes de cumprir aquilo que muito provavelmente já prometemos antes. E que, igualmente provável, não cumprimos.
Outro dia fiz uma postagem nas redes sociais perguntando aos seguidores o porquê de eles não conseguirem tirar suas resoluções de ano novo do papel – e recebi dezenas de respostas falando sobre as tais das crenças limitantes. “Não me acho merecedor de viver o que quero viver”, me disse um. “No fundo no fundo eu não acredito que, se eu tentar, vai dar certo”, me disse outra. E eu fiquei me perguntando:
Quando é que aprendemos a duvidar de nosso potencial? Quando foi que, na nossa história, as pessoas falharam em suas promessas com a gente, o que nos autoriza a continuar fazendo a mesma coisa, dia após dia?
No Portal Despertar estamos estudando um livro muito profundo e transformador chamado “Face to face with fear – transforming fear into love”. A cada mês, eu apresento uma parte do livro propondo atividades práticas que nos aproximam de nossa criança ferida – e, para ensinar, eu preciso praticar. O resultado é que venho resgatando uma série de lembranças de coisas que aconteceram no meu passado e que, de uma forma estranha e torta, me fizeram ser como eu sou.
Uma das lembranças que recentemente resgatei aconteceu quando eu tinha uns 8 anos. Eu estava em Santos, em um dos bate-voltas que meu pai adorava fazer aos finais de semana. Estávamos em um restaurante que servia frutos do mar, o que eu detestava e não via a menor graça em comer. Na minha memória, o garçom do restaurante me prometia que, se eu comesse, ia ganhar algo muito especial. Eu, na minha ingenuidade infantil, coloquei na minha cabeça sabe-se lá por que que ia ganhar um brinquedo do Bozo, desses que quando muito eu ganharia de Natal. Mas o fato é que eu acreditei no garçom e comi a paella.
Quando terminei o prato e cobrei meu presente, ele desconversou e me deu uma desculpa qualquer. E eu me lembro perfeitamente de como me senti quando percebi que tinha sido levada no papo. Sou capaz de resgatar completamente a sensação: este era um mundo em que tudo bem alguém me dizer alguma coisa e não cumprir. Eu lembro do sorriso do meu pai, totalmente inocente, achando graça da situação sem perceber o tamanho da minha incredulidade. Tinham mentido para mim; me prometeram algo que não cumpririam e estava tudo bem pra ele?
Então devia estar tudo bem para mim também.
Pensando sobre o tema, acredito que foi aí que eu aprendi que eu também podia prometer coisas para mim e não cumprir. E, dia após dia, mês após mês e ano depois de ano, eu prometi coisas: eu emagreceria 10 quilos; encontraria um cara legal para me relacionar; juntaria dinheiro; seria mais organizada com as minhas coisas; faria mais caridade; frequentaria mais alguma casa religiosa, fosse ela qual fosse. E, há menos de dois meses do final de 2017, ainda não fiz muitas destas coisas.
Tudo bem mentir para mim. Tudo bem continuar prometendo coisas que não vão acontecer, em nome do bem-estar e da “mea culpa” que eu sinto por meia fração de segundos quando falo, em voz alta para as minhas cachorras, que amanhã vou fazer diferente. É quase como se, na verdade, eu estivesse dizendo para a minha criança interna: “não me traga incômodos com a sua falta de apetite, coma que eu te dou um brinquedo” – que nunca chega.
Quais são as mentiras que você vem contando para si mesmo em troca de uma anestesia momentânea para o seu mal-estar e desconforto? O que te faz pensar que está tudo bem em continuar prometendo coisas para você que você, assim como eu, talvez saiba que não vai cumprir?
Pois, neste ano, eu prometi não fazer nenhuma promessa – mesmo que isso por si só já seja uma promessa. Eu prometi não prometer nada, porque eu prefiro sentir o incômodo de ainda não ter conseguido fazer uma série de coisas que gostaria de fazer do que sentir aquela euforia instantânea, que vem quando eu digo para mim mesma que “tudo bem não ter feito, amanhã você faz”. Desafiando a vida e a morte. Como se eu fosse, um dia, ganhar de Deus e existir para sempre para, assim, cumprir minhas promessas.
O que eu quero, para o ano que vem, é conseguir sentar cada vez mais com a minha criança sem apetite e enfrentar todo o incômodo que vem disso. O que eu quero, em 2018, é ser capaz de suportar os meus incômodos até que eles passem. O que eu quero, para mim e para você, é que cada um de nós se abra para o que nos aflige, sem buscar por amortecimento ou anestesia de promessas que nunca vão se concretizar.
E eu sei, que ao querer tudo isso estou, de certa forma, fazendo promessas. Que meu desafio à vida seja este: o de não me anestesiar.
Porque nada vai fazer sentido enquanto não estivermos sentindo tudo o que viemos para sentir.
Amém.