Seria impossível, para mim, escrever qualquer coisa neste BLOG que não fosse sobre o caso Mariana Ferrer. E essa necessidade vem do fato de que apenas muito recentemente eu me dei conta da quantidade de abusos que eu própria sofri, durante a minha vida, sem perceber que estava sendo abusada.
E se você já sofreu abuso sexual e não está em um lugar seguro neste momento, talvez este texto não seja para você.
Há alguns meses, meu músico preferido no mundo, cuja música tantas vezes me ajudou em momentos de profunda escuridão, foi acusado por diversas mulheres de ser um predador sexual. Eu me lembro de ter ouvido uma de suas músicas em específico, no repeat, durante boa parte das oito horas e meia de duração da cirurgia cerebral de Ricardo, há 6 anos.
E depois de todo o escândalo, até agora não sei como lidar com os momentos em que me pego cantarolando um refrão de uma de suas músicas.
Da mesma forma como não sei lidar quando mulheres queridas contam que estão indo fazer exames femininos em um laboratório fundado por um médico que me tocou de forma inapropriada há mais de 20 anos, quando contraí uma DST em uma de minhas primeiras experiências sexuais e não tinha plano de saúde que cobrisse os exames caríssimos.
Ele era amigo do meu pai e topou me atender de graça.
Eu tinha que me dar por satisfeita, entende?
Quando o tiozinho que cuidava do RH da empresa em que eu trabalhei me cumprimentou com um abraço e apertou meus seios e, diante da minha reação, fingiu espanto como se eu fosse louca, eu de fato me senti louca. Mas eu tinha que me dar por satisfeita de ter um trabalho, enquanto tanta gente passava fome – não tinha como criar encrenca com o tiozinho que estava na empresa desde o início.
E quando eu acordei meio bêbada, no meio da noite, com o namorado em cima de mim, e no dia seguinte ele agiu como se tudo tivesse sido um sonho maluco meu, eu pensei comigo: do que eu estava reclamando? Pelo menos ele estava transando comigo, e não com outra mulher.
Todas estas situações soaram apenas como mal entendidos, afinal eles eram tão legais.
Mas isso cansa: duvidar de nós mesmas, do que pensamos e do que percebemos. Como se aquilo que se passa dentro da gente nunca fosse confiável, como se eu não pudesse colocar a mão no fogo por mim mesma – e se você é mulher, sabe exatamente do que eu estou falando.
Ontem uma de minhas mentorandas me contou que foi ao médico e que ficou incomodada com a forma com que foi examinada. O gastro, segundo ela, palpando seu abdome, foi um pouco mais para cima e mais para baixo do que ela se sentiu confortável. Obviamente, ela não disse nada. Obviamente, ela questionou a própria sanidade, saiu da consulta se achando maluca e inadequada, quase com pena e culpa por ter sequer pensado que o médico poderia ter sido invasivo.
Nós, mulheres, é que somos as inadequadas. Literalmente desde Adão e Eva, fodendo com o mundo.
A inadequação, para mim, começou cedo. Com 5 anos de idade eu já achava que meu corpo não tinha o formato, a textura, o tamanho, o cheiro ou a cor certa. Cresci acostumada com a ideia de que minhas roupas eram as protagonistas e, a mim, restava apenas ser coadjuvante, me espremendo para caber nelas.
Meu corpo sempre foi o vilão da minha vida. Apenas recentemente me dei conta de que, na verdade, meu corpo sempre foi a vítima de minha mente – sempre acusadora e hostil, cheia de preconceitos e regras e machismos internalizados.
Como já cantava Elis:
“Minha dor é perceber
que apesar de termos feito tudo o que fizemos,
ainda somos os mesmos
e vivemos
como nossos pais”.
E em mim existe essa mente e essa voz e aquela parte, resultado da internalização de todas as vozes que falaram em meus ouvidos a vida inteira, que diz que “mas também, vestida assim, queria o quê?”. Uma voz que vem, eu silencio através da minha consciência e não permito que se torne a minha própria voz – mas vem.
Nós precisamos admitir a existência de nossos próprios algozes internalizados e precisamos, mais do que nunca, nos dar conta das vozes que nossas mentes assumem de vez em quando. Porque quando não são reconhecidas, são essas vozes que fazem comentários dúbios sobre o formato, tamanho ou corpos de outras mulheres e eternizam a dor que eu tanto sofri.
São estas vozes que relativizam vivências sofridas de outras mulheres, porque elas usavam uma roupa assim ou assada. São estas vozes que educam nossos parceiros, familiares e colegas de trabalho sobre como desejamos ser tratadas. E são as vozes que, e isso é o mais importante, educam nossos filhos, os meninos e meninas do futuro.
Reconhecer que elas existem não significa legitimizá-las, e sim despertar para nossos próprios demônios internos para que eles não tomem nossas vidas em suas mãos sempre que baixarmos nossa guarda.
Eu ouvi de uma mulher muito querida esta semana, que o estupro sempre tinha existido – e que a diferença entre nós e nossas avós é que, hoje, podíamos falar sobre isso enquanto elas sofreram caladas – tínhamos que nos dar por satisfeitas.
Mas eu não quero me dar por satisfeita.
Nunca mais.