O que escolhemos enxergar

O QUE ESCOLHEMOS ENXERGAR?

Neste sábado acordamos entusiasmados. Tínhamos um almoço bacana marcado e, depois, levaríamos Gael para seu primeiro espetáculo do Cirque du Soleil. Levantamos da cama, tomamos café e fomos para São Paulo. Gael, entusiasmado, só falava do circo e dos “titios voando”que ele ia ver.

Mas, como de vez em quando acontece, uma coisa levou à outra e chegamos ao espetáculo super em cima da hora. As luzes já estavam se apagando quando nos sentamos em nossos lugares, e foi só ficar tudo escuro para Gael começar a chorar.

Devem ter se passados uns cinco segundos para a mulher da cadeira da frente olhar para trás, emburrada. E menos de cinco segundos para ela olhar uma segunda vez. Em menos de um minuto, ela já tinha olhado para trás emburrada umas dez vezes, e vamos lá: eu conheço esse tipo de olhar, porque eu mesma tive esse olhar durante anos.

Na minha vida passada, quando eu não acreditava em amor e minhas lembranças de uma família problemática na infância eram maiores e mais significativas do que minhas esperanças de viver algo diferente no futuro, este era meu olhar preferido. Porque detesto decepcioná-los, amados que me seguem, mas eu era dessas que, quando via uma criança chorando em um restaurante, por exemplo, comentava maliciosamente com as amigas que “bem que restaurante podia ter área de criança e de não-crianças, que nem tinha de fumante e não-fumante”. Sim, eu era.

Mas eu não me lembro de, desde que me tornei mãe, ter encontrado muitos olhares assim. Nesta situação, o mais comum é um olhar compassivo, do tipo “putz, que foda, entendo o que você está passando e desejo do fundo do coração que seu filho se acalme e que todos nós consigamos aproveitar a pequena fortuna que pagamos para estar aqui”.

Mas ao invés disso, o olhar dela, que estava sentada ao lado de uma moça que era nitidamente sua filha, queria dizer, “Criança maldita dos infernos, cale essa boca logo antes que eu amaldiçoe os seus antepassados, pise nos seus brinquedos e salgue as suas terras. O que está se passando com você não é problema meu e eu quero simplesmente que você se cale”.

Eu não esperava sentir o que senti naquele momento. Meu primeiríssimo impulso foi querer dar uma cutucadinha no ombro da mulher e desfazer o mal entendido. Não era possível que ela tivesse zero de compreensão com uma outra mulher numa situação como essa. Eu juro que o que eu queria dizer pra ela era, “ei, estamos juntas nesse barco minha irmã! Ontem foi você, hoje sou eu. Meu filho está com medo, eu não sei direito como lidar com isso, não quero te incomodar mas será que o certo é eu sair logo de cara daqui ao invés de encorajá-lo a enfrentar seus temores? O que você faria no meu lugar? Você está com a sua filha aí do lado… Me ajuda?”.

Mas o que saiu, contrariando todas as expectativas de uma pessoa que trabalha com desenvolvimento de pessoas, depois de cutucar minha irmã ao meu lado, foi: “estou saindo com Gael, porque se essa mulher da frente olhar feio pra gente mais uma vez eu vou enfiar a mão na cara dela”.

E eu saí.

Bufando.

Com Ricardo atrás de mim, chateado, é claro.

Mas duvido que ele estivesse ao ponto de enfiar a mão na cara de alguém.

Eu estava atônita: em um primeiro momento, não conseguia compreender de onde vinha tanta agressividade. Eu nem sequer me lembro de quando foi a última vez que senti tanta vontade de socar alguém; ignorar todo esse papo de autoconhecimento, de “incomodou doeu, leva pra casa que é teu” e, simplesmente, sentir uma vontade irresistível de enfiar a mão em uma pessoa porque ela me irritou. Eu não sou essa pessoa, que sai de algum lugar pra não esbofetear um outro ser humano!

Só que, aparentemente, eu sou.

Ou também sou.

E, de repente, eu entendi.

Jung tem uma frase que diz assim: “Enquanto você não tomar consciência do seu inconsciente, ele vai dominar a sua vida e você vai chamar isso de destino”. E eu já compartilhei por aqui o quanto tenho mergulhado fundo nos meus processos de cura, principalmente no que se remete à minha criança ferida.

A leitura do livro que estamos estudando nas Masterclasses do Portal Despertar tem me feito resgatar várias memórias da infância e mexido pra caramba comigo. Na semana passada, depois de ter um insight tamanho-família enquanto montava a aula que daria para os Despertos, entrei em uma LIVE no grupo do Portal no Facebook e, quando menos percebi, estava aos prantos.

Ricardo, que tinha saído rapidinho com Gael, quase teve um treco quando chegou e me ouviu aos prantos, tamanho a minha emoção (coitado do Ri, rs).

Curiosamente, a caída de ficha tinha sido exatamente o fato de que eu nunca me permiti, enquanto criança, demonstrar o que eu sentia por acreditar piamente que minhas emoções me afastariam das pessoas que eu amava. Que eu não seria amada, aceita ou compreendida. Eu não sei porque, mas cresci acreditando piamente que medo, tristeza, inveja e inadequação eram coisas que só eu sentia. E quando, por um motivo ou por outro, meus pais ficavam bravos comigo, em minha cabeça era sempre porque eu havia me distraído com algo e desvestido a armadura de “tá tudo bem”. De “eu aguento”. De “não se preocupem comigo, eu sou forte”. Era hora de vestir a máscara de “normalidade” outra vez, esconder perfeitamente o que se passava dentro de mim e pelo menos aparentar que estava tudo ok.

Só que a Existência possui uma inteligência própria, e ter tido um filho me faz incapaz de continuar fugindo desta criança. Gael, às vezes, me grita na cara o que eu teria gritado para meus pais, se pudesse ou tivesse coragem. Talvez ele ainda seja muito pequeno para aprender a camuflar seus sentimentos; talvez um dia ele também vista uma máscara de que dá conta de tudo quando, por dentro, se sente esvaziar. Mas hoje, do jeito que ele é, ele me mostra, a cada lágrima derramada, tudo aquilo que eu não me permiti chorar.

E, sendo franca uma vez mais, eu não sei bem como agir quando algo do tipo acontece, porque fico em um limbo entre querer encorajá-lo a superar seus medos e permitir que ele sinta o que quer que seja que esteja sentindo. Eu vivo esse conflito dentro porque ainda não descobri como lidar direito com a minha própria criança – que, às vezes, sente vontade de esmurrar alguém quando vê uma outra criança sem poder sentir o que está sentindo.

Mas tudo é perfeito e está certo em ser como é, como prova o que aconteceu com a gente depois de termos nos levantado das cadeiras.

Assim que atingimos o corredor para as rampas de saída, nos deparamos com dois membros do Staff. Eu, com um cara entre “pelo amor de Deus me ajuda” e “não se mete comigo que hoje não tô boa”, expliquei o que aconteceu e a atitude dos dois foi absolutamente surpreendente. Primeiro nos ofereceram um protetor auricular que, segundo eles, ajudava muito em casos assim. Gael não quis nem pensar em enfiar alguma coisa nos ouvidos naquele momento, então os dois fizeram questão de nos acompanhar até a parte externa da tenda, onde vendem aquelas coisinhas fofas que dá vontade de comprar tudo, e ficaram conosco até Gael se acalmar e se distrair comendo pipoca.

Para resumir tudo o que aconteceu, ficamos a primeira parte inteira do espetáculo do lado de fora do picadeiro. O tempo todo em que estivemos lá fora, um membro do Staff esteve com a gente, puxando papo com Gael, nos tranquilizando de que isso era muito comum e nos orientando em como lidar com a situação.

Sim: no auge da minha falta de recurso pra lidar com as minhas próprias emoções, pessoas absolutamente estranhas passaram a me mostrar que existia uma forma, totalmente nova, de lidar com o que Gael sentia. E o mesmo se aplicava à mim.

Mais tarde eu até perguntaria, para alguns deles, quem era um determinado membro do Staff que, aparentemente, tinha a função específica de lidar com este tipo de situação. Ele contou que Gael era a quarta criança que ele estava ajudando a lidar “com os medos” (ploft na minha cara). Eu não sei se o cara era psicólogo ou simplesmente uma pessoa extremamente sensível e empática, mas a comunicação que ele estabeleceu tanto com Gael quanto com a gente foi perfeita.

Na metade do espetáculo conseguimos entrar novamente no espaço da apresentação – no intervalo, quando todas as luzes estavam acesas, por recomendação deles. Nossos lugares foram remanejados pela equipe do STAFF para que sentássemos na ponta da fileira, próximos ao corredor, para que alcançássemos rapidamente o corredor caso Gael se assustasse com alguma coisa.

Quando algum artista estava para passar por perto da gente ou as luzes a se apagar totalmente, um deles vinha até nós e nos avisava com antecedência. Uma das meninas ficou um tempão sentada no corredor, do nosso lado, simplesmente segurando o balde de pipoca de Gael enquanto ele segurava firmemente a lanterna que ela havia dado a ele para que iluminasse o chão quando ficasse escuro demais.

Ao final do espetáculo fiz questão de dizer a cada um deles o quanto eles tinham feito toda a diferença para mim naquele momento. Muito provavelmente eles até lerão esta postagem, porque eu avisei que escreveria sobre isso. Porque a gente pode achar que está só “fazendo o trabalho” quando, na verdade, está passando recados importantes da Existência para pessoas que estão precisando desses recados. Porque a gente questiona o futuro do mundo e da espécie humana, mas a vida vem e nos dá dezenas de motivos para sermos otimistas.

O que eu aprendi ontem foi que sempre existirão pessoas gélidas que se esqueceram do que viveram um dia e não demonstrarão empatia com o que sentimos – e elas têm o direito de ser assim. Mas a vida sempre vai depender muito menos daquilo que nos acontece do que o que fazemos com isso. E antes da máxima “a gente cria a nossa realidade” ter qualquer tipo de significado quântico ou hippie-chic, ela quer dizer que você constrói a sua visão de mundo baseado no que escolhe olhar.

E eu vou contar para o que eu escolho.

Eu escolho olhar para pessoas sorridentes com olhares bondosos do que para as de olhar gélido e fuzilante. Eu escolho enxergar a empatia e sororidade do que a antipatia e falta de compreensão. Eu agradeço pela oportunidade de aprender, com um completo estranho, a lidar com as emoções do meu filho, ao invés de simplesmente desejar que ele cale a boca para não incomodar os demais como fiz por décadas comigo mesma – mesmo que, para isso, eu perca boa parte do espetáculo sentada em um pufe de plástico do lado de fora. E eu prefiro focar a minha atenção nas pessoas que aceitaram remanejar seus lugares para nos acomodar do que em quaisquer outras.

Eu compreendo completamente o fato das pessoas se sentirem incomodadas com crianças que choram em eventos e restaurantes que custam uma pequena fortuna, mas me sinto grata por, hoje, compreender que as crianças são parte importante da nossa sociedade; e que educá-las, todas elas, a lidar com suas emoções é função de todos nós. Porque a ideia de separação é uma ilusão e o modo como meu filho lida com seus medos irá, um dia, influenciar na vida de todos. Assim como qualquer outra criança.

Eu agradeço especialmente a vocês, Staff do espetáculo Amaluna, por terem me ensinado a lidar com as emoções da minha própria criança interna, quando ela veio à tona e me deixou perdida. Ao respeitar as emoções de Gael e permitir que elas fossem como eram, vocês me autorizaram a sentir e a respeitar o que eu sentia também.

E a todos vocês, que leem esta postagem agora: ter um ano novo, uma vida nova ou simplesmente um dia novo depende disso – escolher no que focar a sua atenção e foco. Não adianta nada o ano mudar se a nossa visão sobre a vida e sobre nós mesmos não mudar também.

Por isso, neste momento, olhe para a sua vida e decida:

Pelo que você se sente grato hoje?

PS: Maria Julia e Mathew, não foram os “titios voando” que fizeram valer cada centavo da pequena fortuna que investimos em nossos ingressos. Foram vocês.

Sobre

É psicóloga e uma das maiores vozes brasileiras do autoconhecimento e da liberdade emocional na internet. Desde 2012, impacta diariamente a vida de mais de 400 mil pessoas através de seus canais nas redes sociais e de seus 3 livros publicados. Flavia está na lista das 14 YouTubers brasileiras para conhecer e acompanhar, segundo o jornal O Estado de São Paulo, e seu primeiro livro, Sua Melhor Versão – Desperte para uma nova Consciência, foi best-seller no Brasil, estando nas principais listas de títulos mais vendidos. Com mais de 8000 alunas, conduz pessoas a se conhecerem e se reconectarem com quem realmente são para construir uma vida mais leve nos relacionamentos consigo mesmas e com os outros.